segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Um táxi pra estação lunar, por Carlos Lula


“Lá vem o doidinho”. A frase reproduzida por crianças expressa um pensamento assimilado. Geralmente um termo dito por adultos, um apelido maldoso àqueles com alguma doença mental. Abuso, agressão, medo, rejeição, perdas. Essas pessoas têm um diagnóstico variado, geralmente proveniente de um histórico que sequer damos a chance de conhecer.

Alguns saíram de casa para fugir do sofrimento. Moravam nas ruas, enfrentando outros problemas, antes de chegar a uma instituição psiquiátrica. Outros não chegaram a fugir, a própria família os deixavam nos antigos manicômios. Havia alguma fé no tratamento, mas havia também o abandono no segundo em que atravessaram os portões da instituição. Ninguém jamais conseguiu contato.

Durante anos, o Hospital Nina Rodrigues abrigou essas pessoas com comportamentos diversos, muitas vezes agressivo – é fato. Existe até algo de muito comum entre elas: suas mentes machucadas pela vida. Incompreendidos. Julgados. Abandonados. O rosto do sofrimento.

Com a extinção obrigatória e gradual dos manicômios no Brasil, a partir da Reforma Psiquiátrica de 2001, aproximadamente 109 pacientes do Hospital Nina Rodrigues precisaram ser reacomodados ao longo dos anos. Muitos conseguiram seguir suas vidas, sendo acolhidos por familiares e amigos. Continuam em tratamento, só que agora sem internação permanente.

Outros 33 não tinham para onde ir. Para eles, a alternativa foi abrir as três Residências Terapêuticas, em funcionamento a partir de 2013. As unidades estão localizadas na Grande Ilha e são o lar para essas pessoas. Lar porque nos remete a uma série de boas lembranças. Este é o tipo de ambiente na Residência.

Geudet, de 84 anos, bem o sabe. Quando deixou o Hospital Nina Rodrigues e chegou a Residência Terapêutica, em 2013, havia muita resistência para ficar, afinal – até aquele momento – Geudet nunca havia tido um lar. Toda mudança para ela se tornava dolorosa, talvez recheada de difíceis lembranças.

Na infância foi adotada. O padrasto a violentava e agredia. Como era de se esperar, Geudet fugiu. Na rua, se envolveu com um rapaz de quem engravidou. Por ser moradora de rua, a criança foi retirada dela e dada para adoção. Tudo isso culminou na internação dessa senhora.

Geudet passou mais tempo nas ruas e fugindo de hospitais psiquiátricos, do que somando boas experiências na vida. Quando enfim se acostumou com o Hospital Nina Rodrigues, com a rotina, as pessoas e a frequentar a missa na igreja próxima a instituição, ela se viu tendo que mudar para a Residência Terapêutica.

Sob zeloso cuidado, Geudet foi demonstrando melhoras significativas, inclusive, muito religiosa, tinha o sonho de visitar o Santuário de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo. Sim, acompanhada de um profissional, ela realizou o próprio sonho.

Oito décadas difíceis até Geudet encontrar seu lar e realizar sonhos. Quem diria que alguém saído de um manicômio tem tanto a contar. A nos ensinar. Além de alguns remédios necessários, o que essas pessoas precisam é ser olhadas com compaixão.

Por isso, aqui fica meu convite. Até o dia 7 de novembro você pode ir ao Centro de Criatividade Odylo Costa Filho para conferir a exposição fotográfica Reencontros. Essa mostra exibe imagens dos moradores das Residências Terapêuticas e, talvez, você perceba um rosto conhecido, um sorriso que pode parecer familiar, um olhar terno que em nada lembra ‘um doidinho’, mas pessoas a quem foi concedido o direito de viver de modo digno.

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