segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

NUNCA É SÓ FUTEBOL, por Carlos Lula



Oito de fevereiro de 2019. Acordado desde as 5 da manhã, parte porque teria de viajar logo cedo para participar da comemoração de 365 dias sem morte materna na Regional de Saúde de Balsas, parte porque meu amado filho resolveu querer brincar em cima de minha cabeça nesse horário. Fui, antes mesmo de iniciar a viagem, impactado com uma terrível notícia: a morte de dez jogadores da base do Flamengo, num incêndio ainda não muito bem explicado.

Naquela mesmo horário em que meu filho mais novo pulava em cima de mim, acontecia uma pane no sistema elétrico do alojamento onde se encontravam os jogadores do Flamengo. Enquanto eu curtia os sinceros gritos e sorrisos sem juízo de um bebê que acorda no meio da madrugada cheio de alegria, a mãe de um dos jogadores, que se preparava para viajar e encontrá-lo para comemorar seu aniversário, agora tem a difícil e inexplicável tarefa de manter a viagem para tentar reconhecer seu corpo no IML. Só de pensar na cena, seguro o choro. 

Tenho dois filhos, tratados com todo carinho que posso dar, e meu coração para com qualquer susto besta que aconteça com eles. Não posso sequer imaginar a dor de um pai e de uma mãe procurando o nome de seus filhos na lista de mortos num acidente. Não faz sentido. Seguro o choro novamente.

O ano não tem sido fácil. Brumadinho e suas centenas de mortos, o caos que se tornou o Rio de Janeiro em razão das chuvas, não bastasse a violência diária a dizimar milhares por suas ruas. Agora, um incêndio. Uma dezena de adolescentes, cheios de sonhos e aspirações, mortos. Carbonizados. Não se passaram cinquenta dias do ano e parece termos percorrido algumas décadas, tantas e tão devastadoras as tragédias.

Tragédias como essas nos fazem refletir sobre a vida. Não é fácil admitir que as coisas que possuem sentido, não são verdade. São miragens, são pedaços de verdade. A verdade é sempre absurda e, talvez por isso, nunca tenha sido tão fácil mentir e tão difícil acreditar no que está à nossa volta e não possui nenhuma lógica, nenhuma razão.

No mês de janeiro, tive o prazer de ler A Velocidade da Luz, livro de Javier Cercas. Por meio dele, fui apresentado a uma das mais belas músicas de Bob Dylan, que não conhecia, chamada It’s Alright, Ma (Tudo bem, mãe – em tradução livre). Num pequeno trecho, que tento traduzir, ela diz mais ou menos assim:

“Escuridão ao meio dia / Cobre até o berço de ouro / A faca feita a mão, o balão da  criança / Eclipsa ambos o sol e a lua / Para entender que você sabe cedo demais / Não há sentido em tentar (...) /Anúncios publicitários te convencem / A pensar que você é o único / Que pode fazer o que nunca foi feito / Vencer o que nunca foi vencido / Enquanto isso a vida lá fora continua / À sua volta (...) Enquanto defendem o que não podem ver / Com um orgulho de assassino, segurança / Enchem as cabeças da forma mais amarga / Para eles que pensam a honestidade da morte / Não cairá sobre eles naturalmente / A vida às vezes / Deve ser solitária (...) Meus olhos batem de frente com cemitérios lotados / Deuses falsos, eu me arrasto / A mesquinhez que joga tão duro / Ando pra cima e pra baixo algemado / Chutam minhas pernas para quebrá-las / Digo ok, eu já tive o bastante / O que mais você pode me mostrar? (...) E se os meus sonhos pudessem ser vistos / Eles provavelmente colocariam minha cabeça numa guilhotina / Mas tudo bem, mãe, é a vida e a vida apenas”

No fundo, a canção fala sobre palavras desiludidas que batem como balas, de cemitérios abarrotados de deuses falsos, de gente solitária que chora e tem medo, e também fala dos que muito cedo entenderam que não vale a pena tentar entender, porque quem não está ocupado em morrer, está ocupado em viver, assim dizia o personagem principal do livro de Javier Cercas.

Sinceramente, creio que desde os 7x1 o país entrou num buraco negro que o levou a uma outra dimensão, onde tudo ocorre às avessas. É a única explicação possível, inclusive, para tempos tão estranhos que temos enfrentado. Talvez o super-homem esteja enfrentando o Bizarro e, ao fim da luta, tudo volte ao normal e saiamos desse buraco em que nos metemos. Deve ser isso.

Porque ali, naquele incêndio, foi possível ver todo o horror do mundo concentrado em poucos metros de morte. Isso foge à nossa compreensão. A qualquer compressão. O pai de Rodney, personagem principal do livro citado, termina um diálogo dizendo mais ou menos assim: “Não tenha [filhos], porque vai se arrepender. Se bem que, se não os tiver, também vai se arrepender. A vida é mesmo assim: faça o que fizer, você vai se arrepender. Mas deixe que eu lhe diga uma coisa: toda história de amor é insensata, porque o amor é uma doença; mas ter um filho é entrar numa história de amor tão insensata que só a morte é capaz de interromper”. É isso. Exatamente isso. Histórias que foram interrompidas sem nenhum sentido. Sem nenhum motivo. Sem nenhuma razão.

Eu só queria escrever sobre o Flamengo, Vascaíno que sou. Mas acho que era isso que precisava ser dito. No fim das contas, Rodney Falk era um sábio. Lá pelas tantas, ele também diz que só sabemos o que queremos dizer quando isso já foi dito. De fato. Era isso que precisava dizer. Agora deixem eu voltar aos meus quadrinhos do Super-Homem. Ele vai vencer o Bizarro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário