A Justiça Federal no Maranhão tomou uma decisão inédita no país: determinou o primeiro bloqueio judicial de verbas do orçamento secreto por suspeita de irregularidades. A medida, que paralisa 20,7 milhões de reais, acontece mais de um ano depois que a imprensa publicou as primeiras denúncias sobre o esquema criado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro para comprar apoio parlamentar no Congresso. A decisão judicial decorre de indícios de fraudes no Sistema Único de Saúde (SUS) por parte de prefeituras do Maranhão, que falsificaram dados de saúde para dar uma cobertura legal aos parlamentares que lhes mandaram verbas do orçamento secreto. A piauí revelou o esquema em reportagem na edição de julho passado, sob o título Farra ilimitada.
Os bloqueios atingem os cofres de quatro municípios maranhenses: Miranda do Norte (9,3 milhões de reais), Afonso Cunha (6,6 milhões), Bela Vista do Maranhão (2,7 milhões) e São Francisco do Maranhão (2 milhões). As quatro prefeituras fazem parte do grupo de cidades do Maranhão que inflaram os números de seus atendimentos no SUS de um ano para o outro. O superfaturamento eleva o teto de verbas em saúde que os deputados e senadores podem enviar aos municípios. Assim, os parlamentares, usando como base os tetos superfaturados, despacham polpudas emendas às prefeituras e ainda contam com o benefício de ficarem no anonimato.
A decisão não bloqueia todos os repasses de emendas, mas o excedente entre o que os municípios receberam e o que deveriam ter recebido se não tivessem fraudado os números. Foram quatro decisões judiciais, todas com o mesmo propósito e todas solicitadas por procuradores do Ministério Público Federal. O objetivo é evitar prejuízo aos cofres públicos, caso os valores excedentes repassados irregularmente por deputados e senadores às prefeituras sejam torrados. Sobre Miranda do Norte, cuja prefeita é Angelica Bonfim (PL), mãe do deputado federal Junior Lourenço (PL-MA), a Justiça observou “nítida e, em princípio, duvidosa discrepância” nos números de atendimentos informados entre 2020 e 2021. “Verifica-se a existência de indícios de que os dados […] encontram-se em dissonância com o quantitativo de serviços de saúde efetivamente prestados naquele período.”
Os procuradores do MPF no Maranhão abriram investigações nas esferas administrativa e criminal com base em duas fontes: a reportagem da piauí e uma análise da Controladoria-Geral da União (CGU), que endossa a suspeita de fraude em dezenas de municípios maranhenses. “A partir da análise da produção hospitalar e ambulatorial informada pelos municípios do Maranhão, foi possível obter sinalizações de aumento abrupto de um exercício para o outro, concentrados em procedimentos que, na sua maioria, não são rastreáveis pelos dados dos indivíduos atendidos, e, ainda, sem que houvesse aumento expressivo na instalação hospitalar municipal nem na quantidade alocada de profissionais de saúde”, diz a análise da CGU, feita pela Controladoria Geral da União no Estado do Maranhão.
A piauí mostrou que a cidade de Bom Lugar, que nem hospital tem, informou que seus atendimentos em saúde aumentaram em 1.300% de um ano para o outro. O município de Governador Luiz Rocha disse ao SUS que seus serviços saltaram 12.500%. Em Luís Domingues, o salto foi da ordem de 39.000%. Santa Quitéria do Maranhão registrou mais exames para detectar infecção pelo vírus HIV do que a cidade de São Paulo. Pedreiras disse ter feito tantas extrações dentárias que dá média de dezenove dentes extraídos por habitante. É a cidade mais banguela do Brasil.
Os deputados e senadores têm três formas de despachar dinheiro para suas bases. As emendas individuais, nas quais cada parlamentar pode mandar até 17,6 milhões de reais por ano, com a devida indicação de sua identidade e do destino do dinheiro. As emendas de bancada, em que cada bancada estadual pode, em conjunto, mandar até 213 milhões de reais, sendo que as informações de autores e valores também são públicas. E a forma mais controvertida de todas: as emendas de relator-geral, que no ano de 2022 totalizam 16,5 bilhões de reais e são conhecidas como “orçamento secreto” porque são distribuídas sem que o autor seja conhecido. Os valores das emendas de relator-geral também não são iguais para cada parlamentar. Varia conforme o gosto de quem coordena o esquema. No caso da Câmara, o mandachuva é o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Casa.
Segundo a CGU, “na análise agregada, tem-se o agravante ainda de que cerca de 62% das emendas recebidas [pelas prefeituras maranhenses] foram sem designação alguma do parlamentar remetente, segundo o que consta nos sistemas de repasse do Ministério da Saúde”. Um dos solicitantes dos repasses foi o deputado Junior Lourenço, que despachou mais de 10 milhões para Miranda do Norte, que, até um ano antes, só tinha capacidade operacional para gastar 1 milhão de reais. Integrante do PL, o partido de Bolsonaro, Lourenço é candidato à reeleição. O prefeito de São Francisco do Maranhão, Adelbarto Santos (PCdoB), apoia para deputado Josimar Maranhãozinho (PL-MA), investigado por desvios de verbas no Maranhão. Outro aliado de Maranhãozinho e de Lourenço é o prefeito de Bela Vista do Maranhão, Augusto Filho (PL).
Em novembro do ano passado, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, havia determinado a suspensão da execução orçamentária de repasses do orçamento secreto. Na ocasião, porém, não se analisou a existência de irregularidades nos repasses, e sim o descumprimento aos princípios constitucionais de transparência e da equidade na distribuição de recursos públicos, destacando a falta de critérios técnicos. No mês seguinte, a ministra autorizou que os pagamentos fossem retomados. O Supremo ainda não realizou o julgamento definitivo das ações que pedem a declaração de inconstitucionalidade das emendas do orçamento secreto.
Outros repasses do orçamento secreto já chegaram a ser bloqueados por suspeitas de irregularidades, mas por meio de órgãos de controle – nunca, como aconteceu agora, por ordem judicial. As quatro decisões que congelaram a movimentação das verbas no Maranhão anteciparam-se, inclusive, ao Tribunal de Contas da União. O TCU tem na sua pauta um pedido semelhante de bloqueio, em decorrência das suspeitas de fraudes no SUS, mas ainda não julgou a matéria. O relator do caso é o ministro Vital do Rêgo.
Os escândalos com verbas do orçamento secreto vêm se acumulando. A Procuradoria-Geral da República, sob o comando de Augusto Aras, até hoje não apresentou nenhum pedido à Justiça para investigar as irregularidades na ponta. No caso do Maranhão, os 20,7 milhões de reais só estão bloqueados graças à ação do Ministério Público Federal na primeira instância, assim como do Ministério Público Estadual e do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. “O MPF/MA, com o apoio da CGU, MPMA e MPContas, está adotando todas as medidas necessárias para proteger o patrimônio público, como, quando for possível, requerer judicialmente o bloqueio dos valores irregulares, bem como investigando os responsáveis por esses crimes”, disse à piauí o procurador da República Juraci Guimarães, representante da Câmara de Combate a Corrupção do MPF no Maranhão.
A apatia do Ministério da Saúde também ajudou a disseminação das fraudes no SUS via orçamento secreto. “A fragilidade do controle do Ministério da Saúde possibilitou que fossem inseridos pelos municípios maranhenses procedimentos fictícios nos sistemas de informação do SUS”, disse o procurador Guimarães, ao ressaltar que os recursos públicos não resultaram em qualquer melhoria para a rede de saúde da população maranhense. Além da falta de controle, o sistema do Ministério da Saúde é ineficaz para o combate às fraudes. Um dos problemas é que o Ministério da Saúde não exige dos municípios a identificação do paciente atendido, bastando apenas inserir o código do procedimento (exame de ultrassonografia, por exemplo) e a quantidade.
O esquema do orçamento secreto com consultas fantasmas é uma conexão direta entre parlamentares em Brasília e prefeituras no Maranhão. A suspeita, sob investigação da Polícia Federal em outros casos, é de que parlamentares recebem propina em troca das emendas que favorecem as prefeituras. Uma parte das verbas – que, em alguns casos, pode chegar a até 30% da emenda – vira o que os corretores de propina em atividade no Congresso chamam de “volta”. São casos que a classe política em Brasília sabe que um dia vão estourar, só não sabe quando.
Fonte: Revista Piauí