domingo, 11 de agosto de 2019

CARTA AO PAI, por Carlos Lula


O ano era 1919, exatamente um século atrás. Um jovem comunica ao pai que conseguiu realizar o desejo com o qual sonhara durante tanto tempo. Depois de 36 anos de vida, enfim, ele anuncia à família seu casamento com Julie Wohryzek. Nunca fora casado, não tivera filhos, tinha um trabalho burocrata que não o encantava e seus livros, até aquele momento, não tinham feito sucesso. Ele só queria a aprovação do pai.

A atitude do pai foi fria e indiferente à notícia. Não poderia, segundo o filho, ter agido de pior forma. Uma profunda tristeza lhe abateu e deu profusão a uma longa carta, de mais de cem páginas, que nunca foi entregue a seu genitor. Após sua morte, a carta virou um dos mais importantes livros da vasta obra daquele que seria reconhecido como um dos maiores de todos os tempos da literatura.

O homem a quem a carta teria sido destinada era Hermann Kafka, ninguém menos que o pai de Franz Kafka, nome inquestionável na literatura moderna e recentemente confundido com uma iguaria árabe pelo Ministro da Educação na atual distopia brasileira.

A prosa densa e intrapessoal de Kafka tornou-se referência na literatura. O sentimento de não pertencimento a este mundo pode ser observado em praticamente todas as suas obras. Em “Carta ao Pai”, mergulhamos em uma profusão de frases dolorosas. Diz ele em determinado momento: “Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”.

Mais adiante ele confessa que o pai nunca o agredira fisicamente. Mas a pura ameaça, nunca concretizada, fazia efeito ainda pior. Ele comparava: “É como um condenado conduzido ao local de execução”. Franz admitia não entender a estranheza e frieza do pai diante do seu ofício de escritor, que não se importava em ler aquilo que ele escrevia. A grosseria do pai com as pessoas em geral, o apoio e a aceitação que nunca teve foram duras penas que Franz sofreu durante toda vida. Durantes seus 41 anos, viu-se assustado e derrotado perante o mundo.

Em certo trecho da carta ele afirma que “casar, fundar uma família, aceitar todas as crianças que vieram, mantê-las nesse mundo incerto e inclusive conduzi-las um pouco é, segundo minha convicção, o máximo entre todas as coisas que um homem pode alcançar”. Como se vê, Kafka, no fim das contas, só queria ser um pouco amado. A figura ditatorial do pai, contudo, não deixa de estar presente em todas as suas obras e muito contribuiu para literatura mundial.

É difícil, muito difícil, apontar qual a influência de um pai na vida do filho. Perdi o meu pai antes, muito antes, do que gostaria. Ele não me viu casar, não conheceu seus netos, não me viu crescer na profissão, não leu os livros que escrevi, não corrigiu os erros que cometi. Não sei ao certo dizer o quanto ele me influencia ou influenciou, mas posso afirmar - com toda certeza - que gostaria de ter vivido muito mais ao seu lado. Hoje, tento ser um pai tão bom quanto o meu foi para mim. 

Longe das dores de Franz Kafka, também gostaria de escrever uma carta de cem páginas ao meu pai. No lugar da amargurada experiência, a alegria da curta vida compartilhada com ‘seu Lula’. Fui muito feliz sendo seu filho e meu desejo é ser tão bom aos seus netos quanto o senhor foi para mim.

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