domingo, 23 de agosto de 2020

Uma difícil escolha, por Carlos Lula


Muitos de vocês devem conhecer Amartya Sen, economista indiano e prêmio Nobel de economia em 1998. Em Desenvolvimento como Liberdade, um de seus livros mais famosos, ele narra o dilema de Annapurna, dona de um jardim que precisa de cuidados. Qual seu dilema? Decidir, entre três jardineiros desempregados, qual irá executar o trabalho, fazendo, para tanto, a escolha mais justa. Qualquer que seja sua escolha, obterá o mesmo trabalho exatamente pelo mesmo preço.

O desafio posto, portanto, é escolher entre Dinu, Bischanno e Rogini. Os três são pobres, mas Dinu é o mais pobre dentre eles. Annapurna pensa, portanto, que ele seria a primeira opção, afinal, o que poderia ser mais importante que ajudar os mais pobres? Mas embora Dinu seja o mais pobre, Bischanno é quem mais se acha infeliz com essa condição por ter empobrecido há menos tempo e se encontrar em estado de profunda depressão. Provavelmente, seria o que ficaria mais feliz em receber a oportunidade de trabalho e aproveitaria melhor essa chance. Pensa a dona de casa que eliminar a infelicidade tem de ser a primeira das prioridades. Uma dúvida, portanto, está lançada à contratante.

Ela então considera analisar o terceiro pretendente, Rogini. Embora não seja nem o mais pobre nem o mais infeliz, este terceiro trabalhador é portador de uma doença crônica, que poderia ser tratada caso lhe fosse dado o emprego. Seria mais justo então escolher esse terceiro trabalhador?

Annapurna encontra-se diante de um dilema: eleger qual elemento será prioritário para decidir a seleção do beneficiado pelo único emprego que ela pode prover. Será a medida da renda-pobreza? Será a maior possibilidade de felicidade produzida? Ou será o favorecimento potencial de uma melhor qualidade de vida?

Amartya não diz qual foi a opção de Annapurna, mas, analisando as hipóteses, deixa claro que todos os critérios, ao mesmo tempo em que são justificados, têm, também, seus vieses e não estão isentos de críticas ou de preconceitos, como critérios humanos que são. São tentativas de racionalizar nossas escolhas, quando não se pode oferecer a todos os interessados os bens que eles fazem jus.

O mesmo dilema visto no exemplo do economista indiano é vivido cotidianamente no Sistema Único de Saúde. Sim, infelizmente, nenhum sistema de saúde do mundo, o SUS incluído, dispõe de todos os recursos para tratar todas as enfermidades. Diante da escassez, temos de lidar com escolhas.

Falo isso porque esta semana a ANVISA aprovou o registro da droga mais cara do mundo. A Zolgensma é indicada para o tratamento de crianças que nascem com atrofia muscular espinhal tipo I. Em razão da doença há a atrofia progressiva dos músculos, o que impede os pacientes de se movimentar. Nesses casos, a AME é devastadora e praticamente todos seus portadores falecem antes de completar dois anos.

Qual é o benefício dessa medicação? Ela aumenta a sobrevida dos seus portadores. Qualquer pai, portanto, com seu filho sendo portador de AME, iria querer usar a medicação. Contudo, o tratamento aplicável com dose única é o mais caro do mundo, como já dito: ele custa nos Estados Unidos em torno de 2,12 milhões de dólares, o equivalente a 11,5 milhões de reais. No mesmo dia do registro pela ANVISA, já houve decisões obrigando Secretarias de Saúde a fornecer essa medicação.

Mas isso seria suportável pelo sistema? A prevalência da doença é 1 de um caso para cada 10.000 nascidos-vivos. No Brasil, com aproximadamente 3 milhões de nascidos vivos por ano, teríamos algo em torno de 300 pacientes com esta doença todos os anos. Com um custo de 11,5 milhões de reais por paciente, teríamos algo como 3,5 bilhões de reais por ano para custear esse tratamento. Isso representa mais da metade do orçamento inteiro do país para tratamentos de alto custo, que atende, em média, 2 milhões de pessoas por ano.

Lógico que a vida não tem preço, mas o valor exigido pela indústria para o tratamento torna impossível a utilização da medicação mesmo em países ricos. Nesse caso também nos encontraremos diante do dilema posto pelo autor indiano: nossa escolha terá de, em alguma perspectiva, ser injusta. Escolher tratar o maior número possível de pessoas não é uma escolha fácil.

Ainda assim, diante da finitude dos recursos públicos, precisamos racionalizar nossas escolhas para alocação dos escassos recursos em saúde, estabelecer processos de deliberação transparentes e entender que, infelizmente, não se pode oferecer tudo a todos os interessados. Isso sem falar da total falta de transparência da indústria farmacêutica nesses casos e do desproporcional lucro envolvido nesse processo. Tal como Annapurna, nosso dilema tem de ser apenas estabelecer o critério mais justo de escolha.

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