segunda-feira, 12 de abril de 2021

Camarote da Vacina, por Carlos Lula


VIP. Sigla do inglês Very Important Person, "pessoa muito importante”. Assim como os “Reis do Camarote”, os “Vips” tentam a todo custo fazer uso da vacina antes mesmo daqueles que mais precisam do insumo. Explico. Na semana marcada pelo Dia Mundial da Saúde, a Câmara Federal decidiu pela flexibilização da compra de imunizantes contra a Covid-19 pelo setor privado no país. A determinação conflitante rema contra o bom senso, fere os princípios do Sistema Único de Saúde e confronta as diretrizes do Programa Nacional de Imunização (PNI). 

Não bastasse as dificuldades que enfrentamos, o brasileiro durante essa semana teve que lidar com o projeto de lei (PL 948/2021), que chegou a ter uma cláusula prevendo que as empresas teriam isenção no imposto de renda para comprar essas vacinas, ou seja, não só iríamos permitir um 'fura-fila' institucionalizado, como também toda a sociedade deveria arcar com o custo das empresas.

O Governo Federal, com sérias dificuldades de articulação, continua tomando caminhos equivocados, continua errando. Medidas sanitárias são necessárias, porém, em pleno período de escassez da vacina contra a Covid-19, defender a competição entre o público e o privado é, no mínimo, para desviar o foco do caos do gerenciamento da crise econômica, social e da saúde pública no país. 

Por princípio, as vacinas devem ser fornecidas para grupos de risco e setores prioritários como profissionais de saúde, idosos, forças de segurança, professores, pessoas em situação de rua, para citar alguns exemplos. Essa priorização não existe por mero capricho ou demagogia, mas sim porque é dever do Estado cuidar dos mais vulneráveis, daqueles em situação de risco, dos imunodeprimidos, seguindo uma lógica epidemiológica. A medida, agora em tramitação no Senado, é um equívoco e não enxergo procedência nela. Não vacinamos primeiro quem tem mais dinheiro, e sim quem mais precisa. A aprovação do projeto de lei pode configurar a institucionalização da desigualdade. 

Segundo o texto do projeto de lei, as doses adquiridas pelo setor privado podem imunizar imediatamente empregados, cooperados, associados e outros trabalhadores que lhe prestem serviços, “viabilizando a imunização dos integrantes das entidades civis e de seus familiares, mediante a contratação de empresa devidamente autorizada pela Anvisa”. Essa é uma visão equivocada do que significa “acelerar o processo de vacinação”.

O Brasil mais uma vez dá uma aula sobre o que não fazer diante de uma crise sanitária. Em nenhum país no mundo houve flexibilização para a compra privada, em detrimento da vacinação do grupo vulnerável, daqueles que não possuem recurso para adquirir doses para si. Além do mais, dividir vacinas entre empresas privadas e grupos vulneráveis é de uma desumanidade sem tamanho. É inadmissível a discussão desse PL. Uma proposta que nos causa vergonha.

Segundo projeção da Universidade de Washington, o Brasil poderá contabilizar 100 mil óbitos por Covid-19 somente no mês de abril. 

Por isso, esse projeto ambicioso e mercadológico precisa ser urgentemente rejeitado. O avanço da doença torna urgente uma análise mais ampla que evite retrocessos ainda maiores. Os erros de início eram justificáveis pelo completo desconhecimento coletivo do Sars-CoV-2. Que desculpa daremos agora?

O projeto que facilita a compra e a aplicação de vacinas contra o coronavírus por empresas privadas já está com o plenário do Senado. O texto, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados, ainda não tem data para ser votado pelos senadores. É preciso, agora, uma atuação responsável e íntegra do plenário. 

Enquanto isso, governadores entram em uma briga judicial em defesa da compra da vacina Sputnik V, da Rússia. A contradição não é evidente? Por um lado, facilita-se a aquisição da vacina por parte da iniciativa privada, e de outro lado dificulta-se a aquisição da vacina junto aos governos subnacionais. A burocracia vigente impede que o Brasil adquira agora milhares de doses. O imunizante já é usado em países como Rússia, Argentina e México, mas está com o uso emergencial travado por aqui por impedimentos burocráticos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Com um cenário tão obtuso, só nos resta a indagação: a quem interessa essa demora?

De acordo com o alerta emitido pela Fiocruz e pelo Butantan, o Brasil pode sofrer um apagão de vacinas já nas próximas semanas. Infelizmente tenho alertado isso nos últimos dias. Com toda a tragédia que foi o mês de março, era tudo o que não desejávamos. Enquanto isso, empresas privadas estão prestes a entrar na competição pela aquisição de mais doses – já escassas ou indisponíveis no mercado – e, embora precisem entregar alguma quantia ao SUS, isso não nos ajudaria a acelerar a vacinação do grupo mais vulnerável. É bom lembrar que Janssen, Fiocruz e o Instituto Butantan mantêm contratos com o governo federal e continuam priorizando o fornecimento de imunizantes para o setor público. 

Nosso apelo é este: que o Senado permita que o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que acumula 47 anos de expertise em vacinação em massa e atende 212 milhões de brasileiros, seja mantido como o executor da imunização da população. Assim também me dirijo ao Supremo Tribunal Federal para que nos permita adquirir milhares de doses da Sputnik para ofertá-las ao SUS. Desse modo, a população vulnerável continuará como grupo prioritário e milhares de vidas serão salvas.

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