Um dos livros mais impactantes que já li foi 1984. Ainda adolescente, adquiri o livro numa dessas idas despretensiosas a uma livraria. Não conhecia Orwell e nem tinha ideia do quão significativo era o que ele havia construído em meados do século XX. Sem saber, ali iniciava minha reflexão quanto às distopias e aos governos autoritários, marcantes no século passado e que assumiram outras formas no século atual.
Mas o conteúdo da crítica já estava dado naquele pequeno livro. Algumas categorias criadas pelo escritor são simplesmente geniais, como o duplipensar. No universo distópico do personagem Winston, uma das estratégias do Partido, que controlava a sociedade, era fazer com que fosse possível assimilar duas ideias antagônicas e fazê-las conviver como se não a fossem.
Escreve Orwell: “Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar”.
Essa acabou sendo uma estratégia adotada na luta política cotidiana, de modo que para discutir a polêmica com o Programa Mais Médicos, pretendo discutir alguns argumentos que foram levantados ao longo da última semana.
“Não há necessidade de médicos no Brasil”. Esse primeiro argumento que proclama a autossuficiência de médicos no país pode ser rebatido quando observamos o déficit de cobertura da atenção primária nas cidades mais pobres do nosso território. Não estamos falando de cidades com 100 mil habitantes, mas de lugares menores, distantes e que em muitos casos nem um salário maior foi suficiente para fixação de médicos no lugar.
O segundo argumento “os médicos cubanos tiraram o emprego dos brasileiros” parece ignorar o perfil do médico brasileiro. De acordo com o relatório Demografia Médica no Brasil 2018, 55,1% dos médicos brasileiros estão concentrados nas capitais dos estados e Distrito Federal, onde estão apenas 23,8% da população. O relatório aponta que a razão do conjunto das capitais é de 5,07 médicos por mil habitantes. Esta razão no interior é de 1,28 médicos por mil habitantes. Queremos com isso dizer que os médicos cubanos não ocuparam espaços anteriormente destinados a médicos brasileiros, uma vez que não existiam médicos nestas cidades.
Ou seja, a despeito do discurso oficial, é inegável que estes profissionais chegaram a lugares, comunidades de vulnerabilidade e de extrema pobreza, que, sem o Programa Mais Médicos, nunca havia visto sequer um médico. Com a saída dos cubanos, no Maranhão, por exemplo, quatro cidades perderão 100% dos médicos na Equipe de Saúde da Família (ESF). Outras 21 perderão mais da metade dos profissionais. No país inteiro 1500 municípios possuem apenas a presença de médicos cubanos.
Há também o argumento de que os médicos brasileiros são desvalorizados pelo Programa. Isso também é falso. O Mais Médicos já concede prioridade aos médicos brasileiros. Somente após todas as etapas da seleção, as vagas remanescentes são disponibilizadas, por meio de cooperação, com a Organização Pan-Americana de Saúde. Ou seja, além de os brasileiros passarem pela seleção primeiro, podem escolher os municípios, de acordo com as necessidades locais. Por isso os médicos cubanos são importantes, eles ocupam as vagas em regiões onde não há oferta ou ela é muito baixa.
Há também um argumento humanitário: os profissionais não podem trazer suas famílias para o Brasil. Outro argumento falso. O art. 18 da Lei nº. 12.871/2013 prevê expressamente que “o Ministério das Relações Exteriores poderá conceder o visto temporário (…) aos dependentes legais do médico intercambista estrangeiro, incluindo companheiro ou companheira, pelo prazo de validade do visto do titular”. A lei permite, inclusive, que os familiares exerçam atividade remunerada no Brasil.
Os argumentos simplesmente não se sustentam. No meio dessa polêmica, poucos lembram que há um problema objetivo de assistência: precisamos dos profissionais nos rincões do país. A esses, pouco importa se os médicos são cubanos, australianos ou marcianos. Importa a efetiva assistência, que deixarão de ter. Infelizmente, teremos a perda repentina de mais de 8.000 médicos.
O que realmente interessa agora é garantir uma resposta rápida e favorável à situação que se criou para que a população não fique desassistida. Mas não deixa de ser curioso as vozes que se levantaram para defender os atos do Governo brasileiro que levaram ao problema que enfrentamos. A ausência de profissionais não seria sentida por essa população. Houve quem duvidasse até que seriam médicos, de fato.
Orwell dizia em 1984: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, rezava o lema do Partido. E com tudo isso o passado, mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado”. Para então concluir: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. E, diria eu, menos é mais. Ou mais é menos. Porque parece que no discurso oficial a redução do número de profissionais vai melhorar os indicadores de saúde do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário