Em tempos de Copa do Mundo, vale sempre lembrar Nelson Rodrigues. Minto. Nelson deve ser lembrado sempre, haja ou não Copa. Nosso gênio pernambucano, como o leitor deve saber, possui um estilo próprio, que convém nunca imitar. O que ele escrevia e a forma como ele escrevia constituía um estilo todo seu.
Nelson, por exemplo, adorava as hipérboles. Se eu as escrevesse, seria apenas considerado ridículo. Mas sob a pena dele, o acorde soava perfeito. Entre a comicidade e o desespero, sua linguagem consegue nos levar para a cena ali descrita. Quem além dele ousaria dizer que o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro? Não bastava falar, por exemplo, que a derrota para o Uruguai em 1950 foi terrível. Para ele, foi simplesmente uma “tragédia pior que a guerra de Canudos”.
Me recordo bem de ter lido essa expressão em suas crônicas e o quanto aquilo me impactou, mais que qualquer narrativa que já tivesse visto ou ouvido sobre o jogo de 1950. E falando sobre futebol, ele conseguia entender e interpretar o Brasil. Tanto que sua famosíssima expressão “complexo de vira-latas”, hoje utilizada para adjetivar nosso país, foi cunhada exatamente numa crônica sobre futebol, discorrendo sobre o fatídico jogo final de 1950 no Maracanã.
Sua crônica possuía exatamente o título deste artigo e foi escrita antes de nosso escrete canarinho partir para a Suécia e conquistar seu primeiro título mundial. Nelson simplesmente escreveu: “Eis a verdade, amigos: – desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor de cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse ‘arrancou’ como poderia dizer: — ‘extraiu’ de nós o título como se fosse um dente”. Para adiante concluir: “E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão.”
E, assim como no futebol, o brasileiro teima em reconhecer suas virtudes. Nelson algumas vezes foi quase profeta. Naquela época, ele já escrevia sobre este aparente prazer em desqualificar o que aqui fazemos, para além de nossos próprios defeitos. Digo isso a respeito de recente pesquisa Datafolha encomendada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Nela, 55% dos brasileiros entrevistados avaliam a saúde no país, seja pública ou privada, como ruim ou péssima, e apenas 10% como boa. O número, lido isoladamente, aparenta ser assustador.
Todavia, não só de complexo de vira-latas vivemos, também possuímos memória curta, curtíssima. Um sistema de saúde público, universal e gratuito existe apenas há trinta anos no Brasil. Pouquíssimos lugares do mundo dispensam medicamentos de alto custo gratuitamente. Em que outro lugar do planeta podemos encontrar tratamento de radioterapia para ricos e pobres, indistintamente, sem qualquer tipo de custo para o usuário?
E já que estamos a misturar saúde e futebol, vale aqui lembrar dos sistemas de saúde da Suíça e da Sérvia, seleções que enfrentamos na primeira fase da Copa. Na Suíça é obrigatório ter um seguro saúde e pagá-lo mensalmente. É uma exigência da legislação a todos os habitantes do país. Já a Sérvia possui um sistema universal de saúde, mas empregados, autônomos e pensionistas devem pagar contribuições ao Fundo de Saúde e o estrato mais rico da sociedade paga mais. Nunca é demais lembrar que no Brasil o SUS oferece saúde gratuita a todos seus habitantes, sem distinção. Já pensou se para ter acesso ao sistema de saúde tivéssemos de pagar por isso?
Deixo apenas essa observação para passar a leitura de outro dado da pesquisa Datafolha/CFM. Entre os entrevistados, 97% afirmaram ter buscado acesso ao menos algum serviço do SUS nos últimos dois anos para si ou para a família. E depois de conseguir ter acesso ao serviço de saúde, os entrevistados aumentam a avaliação do SUS assustadoramente. Neste caso, 39% avaliam o atendimento como bom ou excelente, e apenas 22% como ruim ou péssimo.
É óbvio que queremos um SUS mais organizado, com melhor gestão e, sobretudo, com financiamento suficiente para seus serviços. Mas só mesmo neste país para haver um abismo tão grande entre a ideia que temos de nosso serviço e a avaliação do serviço em si. Nelson deveria ressurgir para escrever sobre a Copa de 2018, uma nova análise para tratar dessa insistente avaliação que fazemos de nós mesmos. Detectar que o nosso complexo evoluiu para uma doença crônica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário