MPF quer revogação de norma que autoriza intervenções médicas sem o consentimento das gestantes
Resolução
do CFM permite que escolhas da mãe durante o parto sejam caracterizadas
como abuso de direito da mulher em relação ao feto
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Foto Reprodução |
O Ministério Público
Federal expediu uma recomendação para que as gestantes brasileiras não
sejam obrigadas a passar por intervenções médicas com as quais não
concordam. O documento, assinado por 16 procuradores da República de
nove estados, é direcionado
ao Conselho Federal de Medicina e busca a revogação de artigos da
Resolução nº 2232/2019. A norma do CFM, publicada na semana passada,
abre espaço para que a autonomia da mãe na escolha de procedimentos
durante o parto seja caracterizada como abuso de direito
da mulher em relação ao feto, mesmo que não haja risco iminente de
vida.
O MPF alerta que, da forma como estão redigidos, os artigos permitem
que o médico não aceite a recusa da gestante em se submeter a
determinadas intervenções e que o profissional adote medidas para coagir
a paciente a receber tratamentos que não deseja. A
resolução prevê, por exemplo, que casos de recusa terapêutica por
“abuso de direito” da mulher deverão ser comunicados “ao diretor técnico
[do estabelecimento de saúde] para que este tome as providências
necessárias perante as autoridades competentes, visando
assegurar o tratamento proposto”.
Pela nova norma, a adoção de procedimentos médicos coercitivos ou não
consentidos é “autorizada” pelo CFM em casos de urgência e emergência.
Contudo, as regras recém-estabelecidas são flagrantemente ilegais, pois
ignoram a exigência de iminente perigo de
morte para que tratamentos recusados sejam impostos aos pacientes.
“Tais regras esvaziam integralmente a autonomia das parturientes
sobre seu próprio corpo, afastando suas escolhas e decisões quanto ao
nascimento de seus filhos. De igual forma, conferem ao médico, de forma
ilegítima e antijurídica, uma liberdade de atuação
profissional ilimitada durante a assistência ao parto,
independentemente do grau de risco a que se submetem mãe e feto, seja
ele baixo, médio ou alto”, destaca a recomendação do MPF.
Além de contrariar o Código de Ética Médica, o desrespeito à
autonomia da gestante também configura crime. Segundo o artigo 146 do
Código Penal, os profissionais que agirem conforme a Resolução nº
2232/2019 poderão responder por constrangimento ilegal caso,
no atendimento à gestação e ao parto, realizem intervenções médicas ou
cirúrgicas sem o consentimento da mulher quando não existir o iminente
perigo de morte. “O direito dos médicos de se recusarem a realizar
procedimentos que, embora permitidos por lei, sejam
contrários aos ditames de sua consciência, lhes permite encaminhar
pacientes a outros médicos, mas não obrigar seus pacientes a aceitarem
suas determinações, caso não caracterizado o iminente risco de vida”,
lembram os procuradores.
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA - Para o MPF, os artigos 5º,
§2º, 6º e 10º da Resolução nº 2232/2019 podem favorecer a adoção de
procedimentos desnecessários e violadores da autonomia das gestantes,
quando se manifestam contrariamente a eles, como a
episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de
passagem do bebê), a administração de soro de ocitocina (para acelerar o
trabalho de parto) e a utilização de manobra de kristeller (pressão na
barriga da mãe para apressar o nascimento). Todas
estas práticas não são indicadas ou são consideradas prejudiciais
quando realizadas de forma irrestrita, segundo as diretrizes adotadas
pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Além disso, a aplicação das novas regras tende a favorecer e
perpetuar cesarianas desnecessárias, visto que a opção da gestante pelo
parto normal pode ser entendida como “abuso de direito”. “No Brasil, uma
em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência
no parto, associada a intervenções desnecessárias e prejudiciais à
saúde, além de desrespeitos verbais e negligência. O país também ostenta
um dos mais elevados índices mundiais de partos cirúrgicos, o que
implica que milhares de mulheres sejam submetidas
a cesáreas desnecessárias anualmente, sendo expostas a riscos
superiores aos do parto normal”, destaca a recomendação do MPF.
Os procuradores pedem que o CFM revogue os artigos questionados, em
relação à assistência ao nascimento, reconhecendo que apenas em casos de
iminente risco de morte o médico poderá adotar medidas em contrariedade
ao desejo materno. Da mesma forma, o Conselho
deverá assentir que caberá à mulher ponderar entre os riscos à sua vida
e à vida do feto quando fizer opções por procedimentos terapêuticos
relacionados à gestação e ao parto, conforme princípios constitucionais
da dignidade da pessoa humana, da legalidade
e da autonomia.
A recomendação expedida pelo MPF é resultado da atuação de diversos
procuradores da República que trabalham em prol da humanização do
nascimento e do direito de escolha da gestante. Atualmente, tramitam
pelo país inúmeros inquéritos civis e ações judiciais
em que constam relatos de mulheres que tiveram sua integridade física e
psicológica violada durante a assistência ao parto, bem como
questionamentos quanto a Resoluções de Conselhos Regionais de Medicina
violadoras da autonomia das mulheres. Tais procedimentos
revelam que profissionais de saúde, ao invés de adotarem as boas
práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento, previstas pela OMS, optam
por impor às gestantes procedimentos desaconselhados pelas evidências
científicas, bem como exercer a medicina de forma
autoritária, em prejuízo ao diálogo e à autonomia das mulheres.
MPF/MA - em virtude da publicação da Resolução CFM
nº 2.232/2019, o procurador da República Rodrigo Pires de Almeida, um
dos signatários da recomendação do MPF, também instaurou, ontem (25), no
âmbito da Procuradoria da República no Município
de Imperatriz (MA), o procedimento 1.19.001.000281/2019-81,
para apurar a atuação de profissionais de saúde da região em relação à
adoção de boas práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento previstas
pela Organização Mundial de Saúde, desde 1996.
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