Mocinha. Era assim que a chamavam. Seu nome, na verdade, era Francisca, mas ela nunca gostou muito. Achava feio, fazia lembrar que tinha vindo do interior do interior. Um pequeno povoado, que sequer existe mais. Mocinha. Assim gostava de ser chamada. E, aos dez anos de idade, Mocinha chegara àquela casa. Sua mãe havia falecido no parto do décimo segundo filho e todos os irmãos se tornaram, do dia para a noite, órfãos. O pai, nunca conheceu. Francisco, o irmão mais velho, que já cuidava da roça da casa, cuidou em tentar dar um destino àquela gente toda após a morte da mãe.
Mocinha foi parar na casa dos Oliveira, na capital. Seria sua chance de frequentar uma escola, onde nunca tinha estado, conhecer a cidade grande e crescer. Era isso. Ali, no meio do mato, era só mais uma boca pra comer. Seu irmão fez com ela essa longa viagem, de cavalo, ônibus e trem, até chegar a São Luís. Era o ano de 1952. Foram recebidos por Dona Fátima, Seu Sebastião e as três crianças. A mãe de Mocinha havia trabalhado na casa da mãe de Dona Fátima. Com certeza ela seria bem acolhida, pensou o irmão. A primeira recepção, contudo, não foi tão boa assim. Como assim vocês não avisaram que viriam à cidade? Não poderiam ter mandado uma carta? Indagou, com ares de poucos amigos, o dono da casa.
Francisco ficou com vergonha de dizer que não sabia escrever, mas não tinha muito o que fazer. Até o dinheiro da volta era contado. Ou voltava ele, ou voltava a irmã. E assim, Mocinha passou a viver na casa dos Oliveira. Foi matriculada na escola pública, ganhou um quartinho nos fundos da casa e tornou-se amiga das três crianças, principalmente de Tereza, cuja idade era praticamente a mesma. Cresceram juntas e Tereza até ensinava Mocinha a ler e escrever. Emprestava seus livros, dava a ela, em segredo, seus cadernos e até uma velha boneca. Isso porque Dona Fátima sempre dizia que Tereza atrapalhava os deveres de Mocinha. Se queria uma casa e comida, tinha de ajudar. Lavar, passar, cozinhar, cuidar da casa. Mocinha nunca ligou para isso e achava ter sorte na vida. Poderia ainda morar lá no interior do interior, já pensou? Aqui tem até televisão.
Mas no dia em que Tereza, já adolescente, levou o namorado e a família dele na casa de seus pais, Mocinha fez a pergunta indevida: quer suco, Tereza? Sem bem entender o que estava acontecendo, apenas sentiu o empurrar de Dona Fátima levando-a para a cozinha. Você está louca? Quer me envergonhar na frente da família alheia? Você sabia que eles são gente importante? Para você é Dona Tereza, viu? Dona Tereza. E não trate mais minha filha assim na frente dos outros.
Daquele dia em diante, tudo pareceu ter mudado. Mocinha não ligava. Se achava com sorte. Poderia ser pior. E assim que Tereza casou com o filho do gerente do banco, anos depois, Mocinha foi morar com ela. Assim, como um presente de Dona Fátima à filha. Até quando os irmãos de Tereza casaram, coube a Mocinha passar um tempo, arrumar as casas, cuidar das coisas. Sempre retornava à casa de Dona Tereza. Tudo isso não incomodava Mocinha.
Ela também nunca teve fim de semana, férias, um namorado ou recebeu remuneração por seu trabalho. Nem com isso se importava. Quando Tereza tornou-se vó e Mocinha foi destacada para morar na casa da filha, neta de Dona Fátima, recém-casada, ela, muito orgulhosa, mostrava o seu quarto a quem os vinha visitar. Vem cá, olha aqui. Atravessando o imponente apartamento no bairro mais caro da cidade. Um cubículo que deveria ser uma despensa. Não cabia uma cama, não tinha sequer janelas. A rede mal conseguia ficar aberta. Perguntaram se ela não sentia dores nas costas de dormir naquela posição e Mocinha disse que não. Agora ela tinha até um ventilador Walita.
Semanas depois, entraram em contato com um médico porque Mocinha começara a apresentar problemas de saúde. Havia desmaiado, umas tosses esquisitas que não paravam. Estava só pele e osso. Em poucas semanas ela foi diagnosticada com câncer. Precisava iniciar seu tratamento imediatamente. A filha de Dona Tereza, neta de Dona Fátima, ao saber do diagnóstico tomou uma imediata providência, com que todos concordaram: mandou Mocinha de volta para o interior do interior, de onde viera décadas antes. Afinal de contas, se estava doente, era obrigação de seus parentes lhe tratarem. Mocinha, que nunca havia ligado para nada do que tinha lhe passado, desta vez ficou profundamente magoada. Como assim voltar para o interior? E antes mesmo de voltar para sua terra, morreu de desgosto, dormindo junto com a velha boneca, na rede que lhe embalara a vida toda.

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