segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O FEITIÇO DO TEMPO, por Carlos Lula


Na minha adolescência, quando não dispunha de antena parabólica ou televisão por assinatura, durante muitos anos assisti a reprises intermináveis de “Feitiço do Tempo”. Um filme estrelado por Bil Murray, ator que adorava por ter feito Caça-Fantasmas.

No filme, Murray está preso no tempo, condenado a viver o mesmo dia todos os dias. A euforia da eternidade logo rende lugar ao enfado de todo ser imortal. É que no fim das contas o filme é uma metáfora sobre o tédio que pode acometer aos imortais: quando estamos condenados a viver eternamente, deixamos de ter urgência para fazer qualquer coisa. Sempre será possível fazê-lo amanhã.  

Sendo assim, o personagem interpretado por Bill Murray só consegue seguir em frente quando encontra um mínimo de sentido para a sua existência e, então, livra-se do feitiço. Muitas vezes, feitiços e curas estão ao nosso lado e não conseguimos enxergar.

Em outubro de 2017, me deparei com a fotografia de uma criança maranhense sugando leite da mãe, porém desnutrida. Uma imagem semelhante àquelas que vemos no comercial do Médicos Sem Fronteiras, mostrando crianças de tribos africanas. É de cortar o coração e, literalmente, chorar. Era um pedido de ajuda.

Na época contei a história do Raimundo. Uma criança que ao chegar na urgência do Hospital Macrorregional de Coroatá encontrou assistência necessária para descobrir uma intolerância alimentar gravíssima e a partir daí ser atendido por nosso programa do Leite Especial.

No início da semana, a foto de um menino rechonchudo, de cabelos compridos e cara séria reapareceu para mim. Raimundo é outra criança. Aquele estado de quase morte - visível a olho nu - não mais existe. Em tudo, o menino exibe vida – na melhor fase da sua curta trajetória. Afinal de contas, com quantos anos você driblou a morte?

Mas, há quem tenha trajetória mais longeva e, embora tenha passado mais tempo trabalhando como quebradeira de coco e fazendo carvão, dona Maria Isaura encontrou prazer no cigarro. E, da muita exposição ao vício tóxico e as precárias condições de trabalho, a maranhense percebeu um caroço na garganta. O diagnóstico médico recomendou a retirada total da laringe. Dona Maria Isaura perdeu muito mais que a própria voz.

Não conseguia ser entendida. Precisou de um intérprete. Passou a contar com o filho para tudo. Ficou dependente dele. Sem voz, virou prisioneira de si até receber a ligação do Hospital de Câncer do Maranhão – seria uma das contempladas com a Laringe Fone. Um aparelho eletrônico que permite a reprodução de uma voz robótica, distante do padrão normal, mas compreensível. Uma doação do Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica. 

Após ser aprovada por critérios que levaram em consideração a perda total da laringe e a vulnerabilidade social, dona Maria Isaura, hoje com 68 anos, iniciou uma nova etapa da vida: reencontrou o gozo das boas surpresas, das boas notícias, chega de perdas. Afinal de contas, com quantos anos você aprendeu a falar?

Semelhante à alegria da quebradeira de coco ao ouvir o som da própria voz, Cleane Sá sentiu a emoção durante a consulta pré-natal, quando pode escutar as batidas do coração da pequena Jasmyne, que chega ao mundo em uma semana.

Cleane é uma das gestantes beneficiadas com o Programa Cheque Cesta Básica Gestante. Muito mais que os cem reais mensais, a mamãe está tranquila quanto a própria saúde e a da bebê. Ele compareceu a todas as consultas, realizou todos os exames e recebeu as vacinas – critério para manter o benefício.

Com o dinheiro, investiu em suas próprias necessidades. Pertencente à Comunidade do Cajueiro, Cleane vive em uma casa muito humilde. Estive lá. Há sons de pássaros, galos, galinhas e patos. Um cachorro dormia num colchão velho no quintal. A casa de taipa estava de pé, mas em escassez de condições favoráveis para uma gestação tão saudável.

Acredite, não é pelos 100 reais em nove parcelas. Garantir que nossas gestantes – em condição tão vulnerável - cheguem ao final da gravidez com saúde é o que realmente importa para este projeto. Afinal de contas, com quantos anos você respondeu ao mundo dando luz e vida a ele?

Nos três casos, o Sistema Único de Saúde estava lá, promovendo o reencontro de pessoas com suas vidas - nascendo, renascendo ou dizendo “não” ao fim da existência. Assim como Bill Murray no filme, é necessário encontrar um sentido na existência, que não está no hipotético legado que deixaremos para quem virá, mas na forma como vivemos o tempo presente. Quando encontramos um propósito para nossa vida, todo feitiço se quebra. Afinal de contas, do que vale viver uma eternidade se não há razões para vivê-la? Nos três casos, mais do que longas vidas, temos vidas dotadas de um sentido.

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