segunda-feira, 17 de junho de 2024

Pela Preservação do Direito, Dignidade e Saúde das Mulheres, por Carlos Lula

 


Nesta semana, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a tramitação do Projeto de Lei 1904/2024, também conhecido como PL do estupro ou PL de incentivo ao estupro. É uma proposta que representa um grave retrocesso para os direitos das mulheres no Brasil. A proposição estabelece que a interrupção de gestações viáveis, assim presumidas aquelas com mais de 22 semanas, mesmo em casos de estupro, risco à vida da mãe e anencefalia fetal, terá punição igual àquela prevista para homicídio simples, 6 a 20 anos de reclusão.

Se aprovado, este projeto de lei poderá condenar uma mulher que realize um aborto após a 22ª semana, mesmo sendo uma vítima de estupro, a uma pena de 6 a 20 anos de prisão. Em contraste, a pena para o estuprador é de 6 a 10 anos. Esta contradição legal é uma afronta à justiça, uma violação dos direitos das mulheres e um absurdo por qualquer ângulo que se observe o tema.

Desde 1941, o Código Penal brasileiro prevê anistia de punição para o aborto em casos de estupro e risco de vida da mãe. Essas exceções foram criadas para proteger a saúde física e mental das mulheres, reconhecendo a gravidade dos traumas associados a essas situações. O PL 1904/2024, ao equiparar o aborto ao homicídio, desconsidera essas proteções históricas, impõe um fardo cruel às vítimas, e inverte a polaridade, colocando as mulheres que sofreram violência na posição de criminosas.

A mudança proposta viola frontalmente direitos assegurados pela Constituição e representa um ataque direto às mulheres, especialmente às mais vulneráveis. Este projeto ainda ignora completamente o contexto de sofrimento e trauma que envolve uma gravidez resultante de estupro. Há uma parcela das mulheres brasileiras que, independentemente de legislação, consegue realizar aborto seguro. O que estamos tratando aqui é de um recorte que é, sim, de gênero, mas também é de classe, com as mulheres de baixa renda do Brasil cada vez mais vulneráveis a uma legislação retrógrada e condenatória.

De acordo com o Anuário de Segurança Pública do Brasil, 61% das vítimas de estupro no país têm entre 0 e 13 anos. Dos 5570 municípios brasileiros, apenas cerca de 200 possui serviço de abortamento legal. Nosso país tem mais de 14 mil crianças gestantes com menos de 14 anos. Some-se isso ao fato que os principais motivos de mortes de meninas no Brasil são complicações na gravidez e suicídio por conta de violência sexual. Sob este novo projeto de lei, essas crianças seriam forçadas a manter a gravidez, enfrentando ainda mais sofrimento físico e psicológico. É inconcebível que nossa legislação possa punir uma criança por uma situação sobre a qual ela não teve nenhum controle.

Mais do que isso. A aprovação deste projeto de lei é mais um passo em direção a um futuro em que os direitos das mulheres são sistematicamente desconsiderados por um Congresso que não esconde odiar as mulheres. O debate em 2024 retrocede a exceções permitidas em 1941, ou seja, há mais de oitenta anos. Com essa proposta, estamos retrocedendo décadas em termos de avanços sociais e de igualdade de gênero. É essencial que a sociedade se mobilize contra este retrocesso e defenda os direitos das mulheres de decidir sobre seus próprios corpos.

Ao igualar o aborto tardio ao homicídio, estamos dizendo às mulheres que seus corpos e suas decisões não têm valor. Estamos perpetuando uma cultura machista de violência e de desrespeito às vítimas de estupro. Essa tendência que vem sendo observada em outros países se encontra em um contexto geopolítico do avanço da extrema-direita e de um conservadorismo que carrega consigo uma ojeriza aos avanços conquistados pelas mulheres ao longo dos últimos 150 anos.

Não podemos permitir que o Congresso Nacional aprove uma legislação tão desumana, cruel e injusta. A sociedade brasileira deve se levantar e exigir que os direitos conquistados ao longo de décadas de luta sejam preservados. Devemos proteger nossas mulheres e crianças das consequências devastadoras deste projeto de lei.

Tenho insistido que este projeto de lei não tem lugar em uma sociedade que preza pela justiça e pela igualdade. Ele não só ignora as realidades brutais enfrentadas pelas vítimas de estupro, mas também criminaliza sua busca por alívio e dignidade. É um projeto que desampara as vítimas e penaliza-as ainda mais. Precisamos enfrentar este debate, não do ponto de vista de uma moralidade particular, que cada um de nós carrega consigo suas crenças e visões de mundo singulares, mas de um prisma de garantia de direitos, de liberdade de escolha e de respeito aos preceitos básicos de qualquer democracia moderna no século XXI.

Conclamo meus colegas parlamentares, a sociedade civil e todas as pessoas de boa consciência a se mobilizarem contra este absurdo. Devemos garantir que este retrocesso não passe no Congresso Nacional. Devemos proteger os direitos das mulheres e reafirmar nosso compromisso com uma sociedade mais justa e igualitária. A luta pelos direitos das mulheres é uma luta por justiça e dignidade para todos.

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